A cidade na Espanha onde grupos de direita radical perseguem migrantes
“À noite, as pessoas têm medo; as crianças não se sentem seguras em casa.”
Nabil Moreno é o líder da comunidade muçulmana em Torre Pacheco, uma cidade na região de Múrcia, no sudeste da Espanha, onde protestos xenófobos e racistas acontecem desde a última sexta-feira (11/7), os piores das últimas décadas no país.
“Moro aqui há 25 anos e nunca tive problemas com meus vizinhos, que são muito gentis e amigáveis”, disse Moreno à BBC News Mundo, o serviço da BBC em espanhol. Os causadores dos distúrbios, diz ele, são de fora.
Grupos de extrema direita, organizados pelas redes sociais e muitos deles vindos de diferentes partes da Espanha, têm se envolvido nas últimas noites no que o ministro do Interior espanhol descreveu como “caça a imigrantes”.
Armados com paus ou barras de ferro, e muitos deles escondendo o rosto, esses grupos violentos têm perambulado por Torre Pacheco, especialmente pelo bairro predominantemente migrante de San Antonio, há várias noites em busca de pessoas de origem norte-africana.
Lá, grupos de jovens norte-africanos ou de segunda geração os aguardavam e os confrontavam.
Os distúrbios já resultaram em pelo menos cinco feridos e oito prisões, embora a situação permaneça altamente volátil e possa se prolongar pelos próximos dias, durante os quais grupos de extrema direita têm prometido mais ações.
Torre Pacheco tem aproximadamente 40 mil habitantes, um terço dos quais são imigrantes. A população cresceu rapidamente nos últimos anos devido ao crescimento da agricultura, na qual trabalham muitos moradores de origem estrangeira.
1. O detonador
A origem desses atos violentos é o ataque brutal a um idoso de Torre Pacheco, em 9 de julho, por um grupo de jovens.
A vítima, identificada apenas como Domingo, caminhava de manhã cedo, como fazia todos os dias, em direção ao cemitério, quando se deparou com três jovens: um com um celular, outro gritando coisas “em língua estrangeira” e um terceiro que se lançou contra ele e começou a agredi-lo.
Tudo aconteceu muito rápido, segundo seu relato. O homem de 68 anos afirma não se lembrar de muita coisa.
Eles não tentaram roubá-lo, então acredita-se que o objetivo do ataque pode ter sido simplesmente filmá-lo para as redes sociais, de acordo com o jornal regional La Opinión de Murcia.
A imagem do homem após o espancamento causou comoção.
O incidente foi então usado por grupos de direita radical nas redes sociais para incitar o ódio contra pessoas de origem marroquina.
Vários grupos se formaram em plataformas de mídia social como o Telegram, onde o canal de direita radical “Deport Them Now Spain” (deporte-os agora, Espanha) convocou uma “caçada” nos dias 15, 16 e 17 de julho para encontrar os autores do ataque, “reuni-los com Alá” e afirmar que, se outros marroquinos não cooperassem na identificação dos agressores, “seriam automaticamente culpados e pagariam pelo que aconteceu”, segundo o site de notícias Eldiario.es.
Grupos de direita radical como o partido Vox há vários anos associam a criminalidade à imigração na Espanha.
O líder do partido, Santiago Abascal, compartilhou um vídeo nas redes sociais neste sábado, quando os episódios de violência em Torre Pacheco já haviam começado, mas sem mencioná-los explicitamente, no qual afirmou que “a Espanha está sofrendo uma invasão migratória brutal” que “roubou nossas fronteiras, roubou nossa paz e roubou nossa prosperidade”.
Em frente a uma pintura que parecia representar uma cena de batalha durante a Reconquista Espanhola, Abascal afirmou que os dois principais partidos políticos da Espanha, o Partido Socialista (PSOE, atualmente no poder) e o Partido Popular (PP), “são responsáveis por toda a violência”, e exigiu “deportações imediatas”.
2. Perseguições xenófobas
Em protesto contra o ataque a Domingo, o prefeito convocou uma manifestação na última sexta-feira na Praça da Prefeitura sob o lema “Torre Pacheco, livre de violência, livre de crime”. Centenas de moradores compareceram, incluindo muitos de origem norte-africana, como Nabil Moreno, que vive na região há muitos anos.
A manifestação foi pacífica e sem incidentes, mas tumultos eclodiram no final da tarde.
Dezenas de jovens, alguns de Torre Pacheco, mas vários vindos de províncias vizinhas ou outras partes da Espanha, partiram em busca dos possíveis agressores, gritando “Mouros, filhos da p**”, “Viva Franco” e “À sua pátria”.
Durante a noite de sexta-feira e sábado, grupos atacaram veículos e estabelecimentos comerciais de moradores de origem norte-africana, incluindo alguns jornalistas, queimaram contêineres de lixo e atiraram pedras e garrafas.
“Estamos fartos do crime, eu sou o primeiro, mas não podemos detê-lo com violência”, disse o prefeito de Torre Pacheco, Pedro Ángel Roca, do conservador Partido Popular, na conta X da prefeitura neste fim de semana.
Os distúrbios mais violentos ocorreram no bairro de San Antonio, onde a maioria da população é migrante e onde grupos de jovens marroquinos encapuzados e armados os aguardavam.
Imagens dos confrontos publicadas por moradores nas redes sociais mostram a violência dos ataques, muitos deles aleatórios, com vítimas atacadas simplesmente por cruzar o caminho dos grupos.
As forças de segurança — a Guarda Civil e a polícia local — foram, por vezes, sobrepujadas pelos incidentes, embora todas as noites conseguissem separar as facções e impedir uma nova escalada.
No domingo, as entradas da cidade foram bloqueadas pela Guarda Civil, que impediu a entrada de grupos de fora do centro da cidade que buscavam causar distúrbios e dispersou grupos de jovens marroquinos para evitar novos confrontos.
Fora do centro da cidade, no entanto, um grupo de agressores violentos conseguiu invadir um restaurante de kebab.
Imagens de câmeras de segurança mostram vários indivíduos encapuzados forçando a entrada no restaurante e destruindo-o em questão de segundos, diante de funcionários aterrorizados.
3. Tensão política
Até o momento, oito prisões foram feitas, duas delas envolvendo pessoas ligadas ao ataque a Domingo, informou o ministro do Interior espanhol, Fernando Grande-Marlaska, em entrevista à Cadena Ser.
O ministro vinculou essas “caçadas” a imigrantes “à retórica do Vox” que criminaliza os migrantes.
“Não sei se estamos trazendo tensão ou não, mas a tensão vem antes da paz nos cemitérios, a tensão vem antes do silêncio dos espanhóis diante da imigração ilegal, estupros, roubos e ataques com facões. Se dizer a verdade traz tensão, então haverá tensão”, afirmou o líder do Vox na segunda-feira.
Dias antes do início dos distúrbios de Torre Pacheco, Rocío de Meer, membro do partido de direita radical, defendeu a expulsão de “milhões de imigrantes” caso não se “adaptem” à cultura espanhola, sem distinguir entre migrantes legais ou ilegais, de primeira ou segunda geração, ou se cometeram algum crime.
Em meio ao fim de semana de distúrbios, José Ángel Antelo, líder do Vox na região de Múrcia, viajou a Torre Pacheco no sábado para discutir as medidas de seu partido contra a imigração ilegal em um evento chamado “Defenda-se da Insegurança”.
Antelo foi denunciado ao Ministério Público pelo PSOE (Partido Socialista Operário Espanhol) por um suposto crime de ódio cometido em Múrcia, enquanto o partido de esquerda Podemos afirmou que fará o mesmo com Santiago Abascal.
Impulsionado pelas políticas de Donald Trump nos Estados Unidos, “o Vox está tendo seu momento e aproveita qualquer coisa, qualquer incidente, para se entregar totalmente”, disse Elisa Reche, diretora do Eldiario.es na Região de Múrcia, à BBC News Mundo.
Com esse tipo de discurso, a jornalista teme que, a partir de agora, “a violência mais extrema, explícita e racista” que se desencadeou em Torre Pacheco possa começar a se normalizar.
O Vox foi o partido mais votado na cidade nas últimas eleições legislativas de 2019, com mais de 38% dos votos. Foi também o partido que obteve mais apoio na Região de Múrcia, onde obteve mais de 28% dos votos.
4. Juventude desenraizada
Torre Pacheco tem uma população de mais de 40 mil habitantes, mas há apenas algumas décadas ela era de apenas 15 mil.
O aumento da agricultura irrigada nesta região árida, impulsionado pela transferência de água entre o caudaloso rio Tejo e o rio Segura há 45 anos, gerou um setor agrícola próspero que exige uma grande força de trabalho para a colheita.
A grande maioria desses empregos, que muitos espanhóis não querem, foi preenchida por imigrantes, a grande maioria do Magreb, no noroeste da África.
Muitos migrantes regularizados trabalham lá, alguns que estão na Espanha há décadas, mas também outros que estão em situação irregular e são marginalizados.
“As pessoas precisam de migrantes, e nós precisamos desse povoado porque foi ele que nos deu empregos, nossas vidas, nosso futuro. Este país nos ofereceu o que o nosso não ofereceu, então não vamos morder a mão que nos deu o pão”, argumenta Nabil Moreno.
Ele está na Espanha há mais de 25 anos, um país que descreve como “muito aberto e muito amigável”, e onde criou uma família.
No entanto, Moreno já havia vivenciado outro momento tenso em 2000, quando revoltas racistas na cidade de El Ejido, na província andaluza de Almería, após o assassinato de três moradores, atingiram grande parte das comunidades do Magreb do país.
Para Nabil Moreno, no entanto, o problema não está nos migrantes recém-chegados, “mas nos jovens nascidos aqui, que se sentem abandonados; não se identificam nem como espanhóis nem como marroquinos”.
Alguns desses jovens de segunda geração se tornaram problemáticos, segundo Moreno.
Muitos são “ni-nis”, termo usado na Espanha para descrever jovens que nem trabalham, nem estudam.
“Eles estão nas ruas 24 horas por dia, 7 dias por semana, então geralmente estão procurando confusão. Eles sentem racismo, são instruídos a voltar para o seu país, mas quando vão de férias para o Marrocos, são tratados como imigrantes e muitos não falam árabe. São jovens muito raivosos e rebeldes. É muito difícil acalmá-los, porque o ódio que eles carregam dentro de si não é novo; vem de muitos anos”, diz o líder da comunidade muçulmana de Torre Pacheco.
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