British Airways 009: Como um avião quase foi derrubado por uma erupção vulcânica
Em uma noite escura nos céus do oceano Índico, o comandante Eric Moody pegou o interfone do Boeing 747 para fazer aquele que se tornou, talvez, o anúncio aos passageiros mais famoso da aviação em todos os tempos:
“Senhoras e senhores, aqui quem fala é o comandante. Nós estamos com um pequeno problema. Todos os quatro motores pararam de funcionar”, disse ele com uma serenidade britânica. “Nós estamos fazendo o nosso maldito melhor pra controlar a situação. Espero que vocês não estejam muito angustiados.”
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Suas palavras se tornaram um exemplo de profissionalismo em uma história que, por muito pouco, não acabou em tragédia. E os ensinamentos que ela trouxe ajudam a deixar as viagens de avião mais seguras até os dias de hoje.
(⚠️Esta reportagem é parte de uma série do g1 dedicada à reconstituição de acidentes e incidentes aéreos, explicando como ocorreram e quais as lições aprendidas. Ao final deste texto, veja a lista dos capítulos já publicados)
O incidente aconteceu em 24 de junho de 1982, no voo British Airways 009. Moody, 41, estava ao lado do copiloto Roger Greaves, 32, e do engenheiro de voo Barry Townley-Freeman, 40. Na ocasião, ainda existia a figura do engenheiro de voo —função hoje extinta na aviação comercial regular de passageiros devido à automação das aeronaves.
Era um voo pinga-pinga: ele saía de Heathrow, em Londres, para Auckland, na Nova Zelândia, fazendo nada menos que quatro escalas: Bombaim (atual Mumbai, na Índia); Kuala Lumpur, Malásia; Perth e Melbourne (ambas na Austrália).
E não era um avião qualquer para aquele périplo: tratava-se de um Boeing 747-200, a maior aeronave de passageiros até então.
Boeing 747-200 da British Airways que sofreu situação de emergência em 24 de junho de 1982; imagem foi feita em janeiro do mesmo ano
Gordon Bevan/Wikimedia Commons
O trio havia acabado de assumir o comando da cabine, na perna entre Kuala Lumpur e Perth. O procedimento é comum em voos longos, quando equipes diferentes se revezam entre trechos do percurso.
Ao decolar da Malásia, 263 pessoas estavam a bordo, das quais 15 tripulantes e 248 passageiros – alguns dos quais, horas depois, estariam escrevendo bilhetes de despedida para seus entes queridos em guardanapos e pedaços de papel.
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Um voo normal, até uma fumaça surgir
Aquele era um voo normal até a aeronave passar perto de Jacarta, na Indonésia, por volta das 20h40 no horário local.
Em altitude de cruzeiro, o clima era de tal tranquilidade na cabine que o comandante Moody aproveitou para ir no banheiro, na parte de trás do icônico deck superior do 747.
Ao andar pela cabine de passageiros, ele notou uma certa fumaça. Aquilo não era incomum, já que fumar dentro dos aviões era algo permitido nos anos 1980.
Só que aquela fumaça não tinha cheiro de cigarro; ela exalava um odor sulfuroso. No deck inferior, os comissários de bordo também notaram a cabine esfumaçada, o que os levou a uma busca silenciosa por algo grave: um princípio de incêndio – talvez provocado por uma bituca mal apagada no banheiro ou algo do tipo, pensavam eles.
Na ausência do comandante, Greaves e Townley-Freeman notaram, pela janela, um espetáculo de fagulhas brilhantes que se acumulavam na lataria da aeronave, contrastando com o breu de uma noite sem lua.
O fenômeno em si não era estranho. Poderia ser o “Fogo de Santelmo”, acreditavam os pilotos – uma série de descargas elétricas provocadas pelas aeronaves quando elas passam por uma região ionizada da atmosfera.
Havia uma diferença, porém: uma atmosfera ionizada é indicativa de tempestade, algo que não estava previsto naquele percurso. Os radares do 747, inclusive, mostravam céus calmos pelos próximos 500 quilômetros, pelo menos.
Os passageiros próximos das janelas também se surpreenderam: quem podia ver as asas notava o mesmo brilho ao redor delas.
Os quatro motores param, um a um
Quando Moody retornou à cabine dos pilotos, o clima não era mais de tranquilidade. Copiloto e engenheiro estavam com cintos afivelados, e Greaves havia colocado os motores em modo de ignição contínua. O procedimento é realizado, em geral, quando o fluxo de ar se torna inconstante, o que pode “apagar” motores a jato.
Na parte de trás da aeronave, os ocupantes notavam que a fumaça se tornava cada vez mais densa. O calor anormal fazia os passageiros suarem. A preocupação aumentou quando eles notaram labaredas saindo pelos quatro motores.
Fazia apenas três minutos que Moody havia retornado à cabine de pilotagem quando, incrédulos, os pilotos receberam o aviso do engenheiro de que o motor 4 havia parado de funcionar. O Boeing 747 é equipado com quatro motores, e a falha em um deles mantém o avião em condições de voar em segurança.
Seguindo o procedimento normal em caso de qualquer pane, eles pegaram o manual de bordo (na época em papel, hoje eletrônico) para saber o que fazer em seguida, mas não houve tempo de fazer qualquer consulta: o motor 2 falhou em seguida, depois o 1 e, finalmente, o 3.
“Em um minuto e meio, nós fomos de quatro motores funcionando normalmente para não ter [nenhum] motor”, contou Greaves, anos depois, ao ser entrevistado por um programa de TV.
Agora já não havia nenhum motor para manter a aeronave voando em segurança; a mais de 11 km de altitude, o Boeing 747 da British Airways havia se transformado em um enorme planador, o que impunha a necessidade de pouso o mais rápido possível.
‘Mayday’
“Mayday, mayday, mayday. Speedbird 9, nós perdemos todos os quatro motores a 370″, anunciou Greaves no rádio, declarando emergência para a torre de controle do aeroporto de Halim, em Jacarta.
O “370” era uma referência à altitude em que eles estavam, 37 mil pés, ou cerca de 11,2 km.
Enquanto o trio na cabine de comando aguardava resposta, o engenheiro de voo realizava tentativas frustradas de religar os motores. Lentamente, o Boeing iniciava uma leve descida. Um silêncio tomava conta da cabine.
Quando a resposta finalmente chegou, ela foi recebida com incredulidade. “Speedbird 9, vocês perderam [só] o motor número 4?”, questionou o controlador de voo em Jacarta.
A torre estava com dificuldade de entender o que o British Airways 009 dizia por conta de uma interferência no rádio. Por sorte, um piloto da Garuda, companhia da Indonésia, que estava na mesma frequência, entendeu a gravidade do que se passava com o 747 e explicou a Jacarta a situação.
Sem o empuxo dos quatro motores Rolls-Royce, o Boeing 747-200 descia a uma razão de 15 para um – ou seja, a cada 1 km que descia, ele avançava 15 km para a frente. Os pilotos do voo 009 calcularam ter em torno de 23 minutos para encontrar uma solução antes que a aeronave se espatifasse contra o oceano.
Na ausência de uma outra alternativa, Moody, Greaves e Townley-Freeman repetiam o procedimento de acionamento dos motores. Mesmo sem sucesso, o comandante decidiu realizar uma curva de cerca de 180º à esquerda, em direção ao aeroporto de Jacarta.
Durante a queda, comandante e copiloto notaram outro problema: alguns equipamentos haviam parado de dar informações confiáveis, como a velocidade. Essa era uma questão crítica, pois o religamento dos motores precisa ser realizado em um intervalo de velocidade específico. Moody, na base da tentativa e erro, passou a subir e descer o nariz da aeronave.
Uma cordilheira no caminho
Naquele momento, nenhum dos 263 ocupantes, nem mesmo os pilotos, sabiam exatamente o que estava acontecendo. Na história operacional do 747, a perda dos quatro motores em altitude de cruzeiro era inédita. Os pilotos treinavam emergências parecidas em simulador, mas nem tudo ocorria da mesma forma na vida real.
Uma diferença que eles perceberam foi o alerta de falta de pressurização na cabine. Só que os simuladores não levavam em conta que os motores forneciam energia para o sistema que mantinha a cabine pressurizada.
Confrontados com a situação, os pilotos colocaram as máscaras de oxigênio, para conseguir respirar em segurança naquela altitude – mas, para o azar deles, a do copiloto Greaves estava quebrada. Moody não teve alternativa senão acentuar a descida para que seu colega não perdesse a consciência. Máscaras de oxigênio caíram em frente aos passageiros.
Enquanto Greaves e Townley-Freeman se concentravam em religar os motores, Moody pensava em alternativas. Para chegar a Jacarta, ele precisaria passar por cima de uma cadeia de montanhas que corta a ilha de Java. Era necessário estar a pelo menos 3.200 metros de altitude para atravessá-la com a certeza de que o avião não bateria de nariz na cordilheira.
Dessa forma, não restava outro plano B a não ser tentar um pouso no oceano, no meio da noite. Foi quando Moody pegou o interfone e fez o seu célebre anúncio sobre os motores terem parado de funcionar: um “pequeno problema”, segundo ele —o que confirmou os temores dos passageiros de que a situação era grave.
“Ma, problemas. Avião caindo. Vou fazer o melhor para os meninos. Nós te amamos. Desculpa”, escreveu Charles Capewell, que viajava com os filhos, em um bilhete que, felizmente, ele pôde entregar em mãos à sua mulher.
A baixa altitude, os motores voltam a funcionar
A aeronave estava cada vez mais baixa, a 3.800 metros. Enquanto o comandante se decidia entre apontar seu 747 contra a montanha ou contra o mar, uma das tentativas de religamento finalmente deu certo: o motor 4 finalmente voltou a girar. Depois, o motor 3. Logo em seguida, os motores restantes.
Um sentimento de alívio tomou conta dos passageiros quando a aeronave voltou a subir para ultrapassar a cadeia de montanhas que separava a aeronave do destino de emergência, o aeroporto internacional de Halim, na capital indonésia.
Mas, quando o Boeing ultrapassou os 4.500 metros de altitude, o “Fogo de Santelmo” voltou a aparecer. O motor 2 passou a apresentar trepidação e foi desligado. A situação ainda era preocupante.
As luzes de Jacarta apareceram à frente do cockpit, mas os pilotos não conseguiam ver a cidade com nitidez. Num primeiro momento, acreditavam que a umidade havia impregnado as janelas. Os limpadores de para-brisas não conseguiram removê-las.
Ainda assim, decidiram prosseguir. Com poucos equipamentos funcionando e sem possibilidade de fazer um pouso visual normal, o 747 finalmente tocou a pista 26 do aeroporto de Jacarta, numa demonstração de talento e habilidade dos pilotos. Todos os ocupantes sobreviveram. Ninguém se feriu. Anos depois, dois dos passageiros até vieram a se casar.
Mas, ao deixar o avião, ninguém ainda tinha respostas satisfatórias sobre o incidente.
Um vulcão em erupção
Erupção do Monte Galunggung, na Indonésia, em 1982
USGS/Domínio Público
Do lado de fora, na pista do aeroporto de Halim, era possível constatar que a pintura da aeronave estava gasta nas extremidades. Não era umidade que cobria as janelas: elas estavam riscadas.
A resposta estava no topo de uma montanha próxima a Jacarta, no oeste da ilha de Java: o monte Galunggung, um vulcão notoriamente ativo, havia entrado em erupção e expelido uma nuvem de cinzas naquela noite, cerca de duas horas antes da passagem do voo British Airways009.
Embora o vulcão tivesse registrado atividade nos dias anteriores, a erupção, durante a noite, não gerou nenhum tipo de aviso às aeronaves que percorriam a região.
Tampouco a nuvem de poeira era visível pelos radares meteorológicos dos aviões – ela é seca, não contém água, sendo que os equipamentos embarcados são feitos justamente para detectar umidade.
Cinzas vulcânicas, um risco real
Interior da turbina de jato mostra acúmulos de poeira vulcânica
Reprodução/Rolls-Royce
As cinzas vulcânicas são compostas de partículas muito finas e muito abrasivas. Na época, não havia a exata dimensão do impacto delas no funcionamento dos aviões.
As explicações técnicas começaram a vir quando a Rolls-Royce, fabricante dos motores do 747 da British Airways, desmontou e inspecionou as unidades danificadas. Eles concluíram que as cinzas se acumularam dentro do motor, formando um amálgama devido às altas temperaturas que impediu a passagem do ar e provocou o desligamento.
Uma vez que o voo 009 saiu da nuvem, a pressão do ar “quebrou” esses bloqueios e desobstruiu o fluxo de ar e fez com que os motores pudessem ser religados. Outros danos, porém, foram observados nos componentes, desgastados pelo contato com as partículas.
A tripulação da British Airways recebeu condecorações pela bravura e por terem conduzido o Boeing e seus passageiros ao solo em segurança.
Já os procedimentos da aviação foram revistos. Dias depois do incidente com o 747 da British, um outro voo, da Singapore Airlines, teve problemas com os motores devido a uma nova nuvem de cinzas expelida pelo Galunggung. Foi só então que as autoridades da Indonésia fecharam o espaço aéreo ao redor do vulcão.
Hoje em dia, serviços de meteorologia oferecem informações mais detalhadas sobre o fenômeno, para que os voos sejam devidamente desviados.
Em 2010, uma série de erupções do vulcão Eyjafjallajökull, da Islândia, lançou diversas nuvens de poeira entre março e junho, causando disrupções jamais vistas no tráfego aéreo da Europa. Os atrasos e cancelamentos foram um preço incômodo, mas infinitamente melhor a se pagar do que o susto levado pelos ocupantes do voo British 009.
Voo British Airways 009
Editoria de Arte/g1
g1 conta a história de acidentes e incidentes aéreos famosos
⚠️ A reportagem acima é parte de uma série do g1 dedicada à reconstituição de acidentes e incidentes aéreos, explicando como ocorreram e quais as lições aprendidas. Leia a seguir alguns dos textos já publicados:
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