Delimar Vera foi raptada 10 dias após o nascimento e dada como morta; mas a mãe a reconheceu em uma festa infantil de aniversário 6 anos após
ARQUIVO PESSOAL CEDIDO AO PROGRAMA OUTLOOK DA BBC
Um incêndio trágico na casa de uma família nos Estados Unidos deixou, segundo as autoridades na época, um morto: um bebê recém-nascido que dormia em um quarto destruído pelas chamas.
Mas, seis anos depois, a mãe vê uma menina em uma festa de aniversário, com as mesmas covinhas de sua bebê, e acaba descobrindo que é sua filha, que tinha sido raptada.
Esse caso, que teve grande repercussão nos anos 2000, é contado em um episódio do podcast Que História, da BBC News Brasil, que pode ser ouvido no YouTube, Spotify, Amazon Music, Apple Podcasts, Deezer e outras plataformas de streaming.
‘Eu me lembro de googlar e ler esse artigo sobre mim. Era um psiquiatra falando sobre meu caso, e ele dizia que não se surpreenderia nem um pouco se um dia, de repente, eu começasse a passar por um tempo bem difícil. E era exatamente isso que estava acontecendo comigo’
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O incêndio ocorreu na noite de 15 de dezembro de 1997, na casa de Luz Cuevas e Pedro Vera, um casal que morava na Filadélfia, com seus dois filhos pequenos e uma bebê de dez dias, Delimar, que dormia em um quarto no andar de cima.
Segundo os bombeiros, o incêndio teria sido causado por uma fiação defeituosa. Nenhum vestígio da bebê foi encontrado. Ela foi dada como morta, completamente consumida pelo fogo, de acordo com os relatórios do médico legista.
Os pais ficaram arrasados. Mas o que eles não sabiam, é que Delimar estava viva, sendo criada a apenas 20 quilômetros de distância, do outro lado da cidade. Ela ganhou um novo nome, Aaliyah, e morava com Carolyn, a mulher que ela acreditava ser sua mãe, e três irmãos mais velhos.
E levava uma vida normal de menina caçula de uma família, como Delimar contou ao programa Outlook, da BBC.
“Tinha minha mãe, meus irmãos, ia para a escola. Também ia para uma escola de modelos infantis, o que foi muito legal. Carolyn me levava para audições de comerciais, concursos e sessões de fotos. Em um primeiro momento eu gostava disso, adorava estar sob holofotes e era uma criança muito extrovertida. Aos domingos fazíamos um pequeno show e eu me apresentava e dançava.”
“Eu era a irmã menor, pentelha, com certeza. Eu passava muito tempo com Angelica, minha irmã mais velha. Fazíamos tudo juntos. Onde quer que ela fosse, eu tinha que ir. Ela adorava dançar. A gente dançava juntas.”
“E eu amava Carolyn, minha mãe. Era uma pessoa extrovertida, engraçada, bem carismática. Mas ela trabalhava à noite, lembro de que via ela pouco de dia, de ficar perguntando ‘onde está minha mãe?’. Então eu fui criada principalmente por meus irmãos e também por minha tia e meu tio.”
‘Você tem um chiclete no cabelo’
Delimar tinha seis anos quando foi morar com sua família biológica: ‘Foi estranho, no começo. Porque, mesmo com todo afeto, todo o amor que eu recebia, eu continuava me sentindo como se fosse uma estranha ali’
Arquivo Pessoal
A vida seguia normalmente, até o dia em que começaram a aparecer eventos estranhos na vida da menina Aaliyah. O primeiro foi em janeiro de 2004. Ela tinha acabado de completar seis anos quando foi levada a uma festa de aniversário.
“Chegamos à festa, ficamos na parte de baixo da casa por um tempo. Eu vi uma mulher que me deixou intrigada. Eu meio que gravitei em torno dela e pensava, ‘como ela é bonita’. Não sei por que fiquei tão intrigada com ela.”
“Depois subi as escadas para brincar com outras crianças e essa mulher me abordou no corredor dizendo que eu tinha um chiclete no cabelo. E pedi para ela tirar o chiclete. Aí ela acabou arrancando vários cabelos, até doeu. Depois, a mulher desapareceu.”
“Quando desci as escadas, Carolyn imediatamente me pegou e disse: ‘Vamos embora, já!’. Mas eu disse ‘por quê? Chegamos há pouco’. Aí ela disse: ‘Temos que ir, tem uma mulher má que quer tirar você de mim.’ Eu fiquei assustada, mas não achei que isso realmente pudesse acontecer.”
Algum tempo depois, Aaliyah foi levada a um centro médico por Carolyn com sua irmã, Angelica. O que ela não sabia, é que Carolyn tinha sido intimada a levar a menina para colher saliva como parte de um teste de DNA.
“A gente tava nesse prédio, na sala de espera. E Carolyn ficava me levando pro banheiro. Ela dizia ‘Angélica, vigie a porta!’. E no banheiro, ela tirava da bolsa um pequeno frasco de spray com um líquido transparente dentro dele. Ela borrifava esse líquido na minha boca e dizia, ‘não engula”‘. Às vezes, engolia sem querer. Fizemos isso várias vezes. Voltávamos ao banheiro e ela borrifava o spray na minha boca.”
Suspeitando que menina em festa era sua filha, Luz Cuevas arrancou uma amostra do cabelo dela para fazer teste de DNA
JEFF FUSCO-GETTY IMAGES
Os resultados desse teste de DNA acabariam virando a vida de Aaliyah de cabeça para baixo. Eles confirmaram que Aaliyah, de 6 anos, era na verdade Delimar Vera. Foi como a história de um milagre com final feliz, e, não à toa, ganhou manchetes no mundo inteiro.
Mas para a menina que agora passou a se chamar Delimar, foi uma época desconcertante e difícil. De um dia pra o outro, ela foi levada da casa de sua família.
“Quando me levaram de casa eu chorava porque não sabia por quê. Mas vendo na TV os noticiários, eu comecei a entender que Carolyn tinha feito uma coisa ruim. Que ela tinha mentido pra mim todo esse tempo.”
Carolyn Correa, a mulher que Delimar sempre chamou de mãe, foi presa. Ela não contestou o veredito de culpada por sequestro — o que significa que nem negou nem admitiu o crime — e foi condenada a uma pena de um mínimo de 9 anos de prisão.
Uma semana depois de ser retirada da casa de Carolyn, Delimar foi levada a uma grande sala, para o primeiro encontro individual com sua mãe, Luz.
“Quando minha mãe entrou, eu estava escondida embaixo da mesa. Nos abraçamos e ela estava chorando. Eu perguntei ‘por que você está chorando? Você não está feliz em me ver?’ E ela respondeu: ‘Não é isso, são lágrimas de alegria’.”
Delimar foi levada à nova casa e apresentada à nova família. Como era esperado, ela era o centro das atenções no novo lar.
“Eu recebia muita atenção. E eu não estava muito acostumada a receber afeto do jeito que recebia agora, de minha mãe. E os meus verdadeiros irmãos eram de idades mais perto da minha, o que achei ótimo.”
“E eu sentia uma tristeza por minha mãe ter sofrido tanto. Ela me perdeu por tanto tempo. Eu fiquei com essa coisa na cabeça de querer provar para ela que eu era a filha perfeita, a filha de quem ela sentiu tanta falta todo esse tempo. Acho que isso despertou o meu lado de atriz mirim, comecei e interpretar essa filha perfeita.”
“Foi estranho, no começo. Porque, mesmo com todo afeto, todo o amor que eu recebia, eu continuava me sentindo como se fosse uma estranha ali. Eu ansiava por afeto e aceitação. Mas eu ainda sentia um pouco a falta da primeira família. Achava que um parte de mim tinha ficado com eles.”
“Acho que na maioria das famílias o estágio da infância e os primeiros anos de vida são repletos daqueles momentos de criar laços. Quando uma mãe segura um filho, e olha nos olhinhos dele. Esse é um desses momentos de criar esse vínculo, essa conexão super forte. Minha mãe e eu não tivemos isso. Ele perdeu várias coisas importantes da minha vida. Então, essa falta de vínculos no começo da minha vida definitivamente criou uma barreira entre nós.”
“Quando eu tinha cerca de 12 anos, quando os hormônios começam a bater, eu comecei a pensar mais sobre isso, essa dificuldade. Eu me lembro de googlar e ler esse artigo sobre mim. Era um psiquiatra falando sobre meu caso, e ele dizia ‘ela está tão feliz agora que é criança, mas não me surpreenderia nem um pouco se um dia, de repente, começar a passar por um tempo bem difícil’. E era exatamente isso que estava acontecendo comigo.”
“Então, eu estava com 12 anos e a relação entre minha mãe e eu estava bem complicada. Um dia fugi de casa e me escondi na casa de uma amiga. Foi só por uma noite. A mãe dela nos encontrou no dia seguinte. Fiquei de castigo por um tempão, no meu quarto, não conseguia assistir TV, não conseguia fazer nada. Eu estava com muita raiva, achava tudo péssimo na minha vida. Fiquei muito, muito deprimida. E um dia foi como se eu tivesse me dado conta, pela primeira vez, de que, meu Deus, eu fui raptada!’.”
Delimar e Luz, em 2008, quatro anos após o reencontro: ‘Acho que na maioria das famílias o estágio da infância e os primeiros anos de vida são repletos daqueles momentos de criar laços. Minha mãe e eu não tivemos isso’
DAVID LIVINGSTONE-GETTY IMAGES via BBC
O impacto do sequestro voltou a reverberar na vida de Delimar. Enquanto se aproximava da vida adulta, ela começou a juntar as partes que faltavam em sua história — muitas delas envoltas em mistério.
E a primeira das várias perguntas que ela tentou responder foi essa: o que realmente aconteceu na noite do incêndio em dezembro de 1997?.
“Minha mãe me disse que era como qualquer outro dia normal. Que bateram na porta. Ela foi abrir e Carolyn estava ali, parada. A mãe de Carolyn era casada com o tio do meu pai, Raymond. Então ela era prima, por casamento, de meu pai. Ela entrou e disse que tinha um trabalho para Pedro, meu pai.”
“Meu pai, na época, estava meio que entre empregos, e topou. Então, Carolyn e meu pai saíram juntos. Em determinado momento, no caminho para a casa dela, ela disse que esqueceu a bolsa dela na nossa casa. Então meu pai disse: ‘Me deixe na rua na casa do meu primo, aí você vai para minha casa e depois me pega aqui’.”
“Carolyn então voltou para a casa da minha mãe e disse ‘ah, meu Deus, eu esqueci minha bolsa aqui’. E disse que precisava usar o banheiro. Então minha mãe disse, ‘claro, suba as escadas, use o banheiro’.”
“Um tempo depois, ela desceu, elas se despediram e Carolyn foi embora. Um pouco depois, minha mãe disse que ouviu um barulho bem alto, e subiu as escadas. Quando ela chegou lá em cima, meu quarto estava envolto em chamas. Minha mãe me procurou, e por causa da fumaça e do calor, não conseguiu me ver. Ela tentou atravessar o fogo, queimou a testa, mas foi obrigada a sair do quarto pra não morrer.”
“Os bombeiros e a polícia foram chamados e ela ficou gritando com eles, dizendo que não tinha me encontrado no quarto. ‘Onde está minha filha?. Me ajudem!’ E eles pegaram pedaços do colchão queimado, enrolaram e deram pra minha mãe, como se fossem meus restos mortais. Mas minha mãe estava convencida de que eu não estava no berço na hora do incêndio. A essa altura, meu pai tinha voltado e ficou desesperado, tipo ‘meu Deus, cadê minha filha?’. Agora sabemos que alguém me tirou do berço, me levou pela janela e sumiu noite adentro.”
Equipes de TV cobriram esse incêndio e nas imagens das pessoas do lado de fora da casa acompanhando o trabalho dos bombeiros é possível ver o pai de Delimar, Pedro. E ao lado dele está justamente a pessoa que esteve na casa pouco antes do incêndio, Carolyn.
“Acho que isso foi bem inteligente da parte dela, ela estava ali, consolando o primo dela, fazia todo sentido. Se ela tivesse sumido naquele momento, poderiam suspeitar de que ela tivesse pegado o bebê. Mas como ela estava ali, ninguém suspeitaria dela.”
‘Ela borrifava saliva dela na minha boca para sabotar o teste de DNA’
Vídeos em alta no g1
E enquanto Luz e Pedro Vera lidavam com a realidade do trágico desaparecimento da filha em um incêndio, Carolyn subitamente passou a ter um bebê. Como foi possível isso não ter causado suspeitas?
“Carolyn tinha fingido sua gravidez. Durante meses, ela disse às pessoas que estava grávida. Quando o bebê apareceu, algumas pessoas até estranharam, mas acabaram acreditando. Ela disse às autoridades que deu à luz em casa e que uma amiga a ajudou. E ela arrumou todos os meus documentos. Eu tinha certidão de nascimento e cartão de previdência social.”
Luz Vera, a mãe biológica de Delimar, entretanto, nunca aceitou a versão oficial e estava convencida de que a filha estava viva. Foi até chamada de louca por se recusar a aceitar a morte de Delimar. Ela e Pedro já tinham se separado quando Luz foi chamada pela irmã, Tatita, para acompanhá-la à uma festa de aniversário.
“Assim que ela chegou e me viu — e notou minhas covinhas —, disse: ‘Tatita, essa é minha filha!’ E minha tia toda preocupada: ‘Não vá fazer besteira!’. Ela viu minha mãe me seguindo, e depois voltando e dizendo: ‘Olha o que eu peguei, um tufo do cabelo dela’. E minha tia olhou para ela como se fosse uma psicopata. ‘Você arrancou o cabelo de uma criança? Você sabe o que está fazendo?’.”
Luz sabia o que estava fazendo e convenceu autoridades policiais de que Aaliyah, suposta filha de Carolyn, era sua filha Delimar. O passo derradeiro foi o teste de DNA, em que foi colhida uma amostra da saliva da menina, a ocasião em que Carolyn ficou borrifando um spray na boca de Delimar.
“Descobri que ela estava borrifando a saliva dela na minha boca para tentar sabotar o teste de DNA, para que, de alguma forma, aparecesse o DNA dela e não o meu.”
E o cúmplice?
O que desponta nessa história é a frieza calculadora de Carolyn, que planejou o sequestro cuidadosamente, elaborou toda uma rede de mentiras para inserir Delimar em sua família e, mais tarde, mudou várias vezes sua história. Tudo isso sem mostrar remorso pelo que fez, segundo Delimar.
“Ela deu uma entrevista dizendo que meu pai tinha me dado para ela, me colocado no carro dela bem na frente da casa e que minha mãe estava parada na porta. Então ela contava essas mentiras terríveis. Para mim, isso não mostra remorso.”
O grande mistério nessa história continua sendo quem teria sido o cúmplice de Carolyn. Quem foi a pessoa que levou o bebê pela janela.
“Sabemos que ela tinha um cúmplice. E eu acho que é alguém que ela protegeria com sua vida. Infelizmente, não sabemos quem é essa pessoa. Isso é frustrante. Carolyn foi levada à Justiça e teve consequências a pagar. Mas essa outra pessoa também deveria pagar pelas consequências. Ela cometeu um crime.”
A relação de Delimar com a mãe e o pai foi de mal a pior durante a adolescência. Aos 14 anos, de tanto se desentender com a mãe, ela foi morar com o pai. Mas também não deu certo. Delimar parou de ir à escola e acabou sendo colocada sob a guarda do Estado.
O relacionamento com a mãe só melhorou quando Delimar já era adulta.
“Foi só quando eu tinha 18 ou 19 anos que eu reapareci e visitei minha mãe com um ex-namorado meu. E ela me disse que não tinha gostado dele. Eu disse, ‘tudo bem, mas eu gostei’. Mas aí eu me toquei que também não gostava dele e terminei o relacionamento.”
“Alguns meses depois, eu entrei no Tinder e encontrei a pessoa que viria a ser meu marido. Foi amor à primeira vista. Começamos a sair, a namorar e, um belo dia, levei ele para conhecer minha mãe. E ela foi tipo, ‘ah, gostei dele!’. Aí comecei a visitá-la com mais frequência. E assim meio que começamos a reconstruir nosso relacionamento.”
“Acho que nunca estivemos tão próximas como agora. Honestamente, ela é minha melhor amiga e, você sabe, somos daquelas pessoas que ligam uma pra outra só para fazer companhia, ou para perguntar ‘o que você tá fazendo’? ‘Ah, eu tô lavando louça’.”
Delimar Vera conta sua história em um documentário chamado Back from the dead: Who kidnapped me? (“De volta do mundo dos mortos: Quem me sequestrou?”, que está disponível em serviços de streaming.

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