Quando os EUA enviaram até porta-aviões para interferir na política brasileira
EUA mobilizaram o porta-aviões USS Forrestal (foto) para dar suporte ao golpe militar no Brasil
Marinha dos EUA/Domínio Público
O tarifaço imposto pelo governo de Donald Trump ao Brasil não é um movimento inédito dos Estados Unidos para tentar interferir nos rumos da política brasileira.
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Se agora Trump justifica a medida como uma retaliação ao que ele chama de “caça às bruxas” do Judiciário ao ex-presidente Jair Bolsonaro — réu por tentativa de golpe de Estado em processo que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) —, em 1964 o cenário político polarizado quase provocou uma invasão de forças militares americanas ao nosso território.
Amplamente discutida entre autoridades americanas, a Embaixada dos Estados Unidos no Brasil e os conspiradores que derrubariam o governo João Goulart (1919-1976), a trama foi deflagrada em reunião da cúpula militar dos EUA no início da tarde do dia 31 de março de 1964, horas antes do golpe militar instaurar a ditadura no Brasil.
O historiador Carlos Fico, professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), descreve o aparato dos americanos em seu livro O Grande irmão – Da Operação Brother Sam aos Anos de Chumbo: O governo dos Estados Unidos e a ditadura militar brasileira.
“A operação envolveu um porta-aviões, um porta-helicópteros, um posto de comando aerotransportado, seis contratorpedeiros (dois equipados com mísseis teleguiados) carregados com cerca de 100 toneladas de armas (inclusive um tipo de gás lacrimogêneo para controle de multidões chamado CS Agent) e quatro navios-petroleiros que traziam combustível para o caso de um eventual boicote do abastecimento pelas forças legalistas.”
Batizada de operação Brother Sam (Irmão Sam, em inglês), a tática foi negociada intensamente nos estertores do último governo democrático do Brasil antes da ditadura.
As forças americanas sairiam de um porto do Estado da Virginia às 7h do dia 1º de abril, com previsão de chegada à região de Santos (SP) entre os dias 10 e 14 de abril. O grupo, entretanto, nunca chegou ao Brasil.
Primeiro presidente do regime militar, Humberto Castelo Branco avisou os americanos no dia 1º de abril que não precisaria do apoio logístico após o golpe.
Assim, a Brother Sam “começou a ser desmontada”, afirma Fico.
Somente dois dias depois foi decidido que a força-tarefa poderia dar meia-volta e retornar aos Estados Unidos.
A manobra tinha o objetivo de “assegurar o bom andamento do golpe no Brasil”, como explica à BBC News Brasil a historiadora Bruna Gomes dos Reis, pesquisadora na Universidade Estadual Paulista (Unesp) e professora no Serviço Social da Indústria (Sesi).
“Não se tratava de uma ameaça de um país soberano contra o outro, mas do apoio que os Estados Unidos davam para garantir que seus aliados no Brasil tomassem o poder.”
“O contexto é de escalada do discurso anticomunista nos Estados Unidos”, ressalta ela.
Medo do comunismo
Militares avaliaram que não precisavam do apoio americano
Getty Images
O movimento americano era baseado no medo de que as políticas de João Goulart significassem um alinhamento ao bloco comunista liderado pela União Soviética, naquele contexto da Guerra Fria.
Conforme ressalta o historiador Fico, tudo indica que o planejamento dessa ideia intervencionista já viesse desde o governo de John F. Kennedy (1917-1963).
Em suas pesquisas, o historiador encontrou uma versão datilografada do plano datada de 11 de dezembro de 1963, ou seja, menos de um mês depois do assassinato de Kennedy.
“Portanto, pode-se asseverar que o plano foi iniciado ainda na gestão [dele]”, escreve.
A preparação do documento foi encabeçada pelo diplomata Abraham Lincoln Gordon (1913-2009), embaixador dos Estados Unidos no Brasil entre 1961 e 1966.
O texto era dirigido ao então conselheiro de Segurança Nacional norte-americano, McGeorge Bundy (1919-1996).
Em 2001, Gordon admitiu que “nos últimos dias de março de 1964”, Washington efetuou “planos de emergência para fornecer” tanto armas quanto munições para evitar que fosse implementado um governo de esquerda no Brasil.
“Não é fácil para ninguém ver com simpatia o embaixador de uma potência estrangeira que tenha pretensões intervencionistas em relação ao país que o acolhe”, analisa Fico. “Mas não se deve demonizar a figura de Gordon […].”
O historiador comenta em seu livro que, naquele contexto de Guerra Fria, “o embaixador viu-se numa posição em que podia atuar conforme suas convicções de “cold warrior” (“guerreiro” na Guerra Fria) e o fez decididamente, supondo servir da melhor maneira possível o seu país, pondo-se à frente de uma peripécia que lhe rendeu certa notoriedade.”
Toda a operação foi planejada por meio de trocas de telegramas entre Estados Unidos e Brasil. Tais documentos, então confidenciais, foram revelados pela primeira vez apenas nos anos 1970, graças a pesquisa acadêmica realizada pela historiadora americana Phyllis R. Parker.
Ela comprovou que Washington já acompanhava de perto o cenário político brasileiro desde 1961.
“É preciso reparar que o plano de contingência não foi feito às pressas, às vésperas do golpe, nem seria cabível que fosse assim, pelas características essenciais desse tipo de precaução”, afirmou Fico.
Fico esclarece que os documentos trocados entre as autoridades demonstravam preocupação com “qualquer tentativa de mudar significativamente, por violência ou de outro modo, o caráter do regime que governa o Brasil”.
“Os pressupostos estabeleciam que, embora um golpe direitista não devesse ser estimulado, […] a embaixada estabeleceria contatos secretos com os grupos de conspiradores brasileiros para manter-se informada e exercer influência, ou seja, agiria clandestinamente”, pontua o historiador.
Tudo dentro da ideia de que havia “risco de o Brasil tornar-se comunista”.
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Embaixador dos EUA no Brasil, Abraham Lincoln Gordon preparou o plano
Arquivo Nacional
No entendimento dos americanos, os militares brasileiros eram a única força nacional capaz de deter essa ameaça da esquerda.
Gordon entendia que Goulart iria implantar uma “ditadura de tipo peronista” (de Perón, na Argentina) e, depois, “seria dominado pelos comunistas em função dos acordos que seria obrigado a fazer com a extrema-esquerda”, contextualiza Fico.
Para evitar isso, o plano previa a formação de um novo governo, conduzido pelas “forças alternativas”, ou seja, a direita golpista.
Gordon se preocupava também que esse governo conseguisse controlar parte significativa do país para que fosse reconhecido por nações estrangeiras.
Naquela época de mundo dividido em dois polos politico-econômicos, o importante era garantir a influência.
Para o historiador Vitor Soares, apresentador do podcast História em Meia Hora,”o que estava em jogo era o controle político da região”, e não exatamente o risco de Brasil virar comunista.
“O maior interesse dos EUA com a Operação Brother Sam não era evitar uma ameaça comunista real. Até porque ela não existia de fato no Brasil”, diz.
Nesse sentido, Soares lembra que é importante situar João Goulart não como um comunista, mas sim como um reformista.
“Suas propostas, as reformas e base, queriam, por exemplo, ampliar o acesso à terra, à educação, ao voto”, enumera.
“Nada muito além do que países democráticos discutem todos os dias. Mas, no contexto da Guerra Fria, isso era bastante para que os Estados Unidos o colocassem na mira.”
Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), o jurista e cientista político Enrique Natalino reforça que essa ideia de “ameaça comunista”, com o distanciamento histórico de hoje, pode ser analisada “mais como uma construção ideológica interna e externa do contexto da Guerra Fria do que uma realidade concreta que justificasse a força militar estrangeira”.
Natalino explica que a operação Brother Sam não envolveu o deslocamento de forças militares formais ou uma intervenção terrestre direta por parte dos Estados Unidos no Brasil.
“Contou, na realidade, com a mobilização de uma estrutura de apoio que incluía o envio de uma força de apoio logístico e político, composta por militares e civis estadunidenses que podiam atuar de forma clandestina ou indireta para influenciar o cenário político brasileiro, com apoio direto de agências do governo dos Estados Unidos, como o Departamento de Estado e a CIA”, contextualiza.
“O poder militar efetivamente mobilizado se restringia ao nível de planejamento, inteligência e assistência logística, sem a formação de uma força de combate ou ocupação física.”
Mobilização
Congresso Nacional, em Brasília, em 1964, quando ocorreu o golpe
Arquivo/Agência O Globo
O desembarque de tropas americanas não era dado como necessário a qualquer custo. Pelo plano, isso só ocorreria se houvesse clara evidência de “intervenção soviética ou cubana” do outro lado.
No seu livro Brazil and the quiet intervention, 1964 (Brasil e a intervenção silenciosa, 1964), a historiadora Phyllis R. Parker. Parker conta que a Embaixada dos Estados Unidos no Brasil entendia que “se houvesse um confronto” naquele contexto, “parecia provável” que ele fosse entre Goulart e um conglomerado de “apoiadores de esquerda e comunistas” contra “a liderança militar alinhada com setores tradicionalmente conservadores”.
Do lado à esquerda, estariam os trabalhadores, estudantes, camponeses e sargentos das Forças Armadas. Do outro, empresários, proprietários de terras “e um número crescente de centristas”, que viam o governo Goulart como “cada vez mais ineficaz ou perigoso”.
Ela contextualiza que os militares brasileiros “eram aliados tradicionais dos Estados Unidos”, e esse alinhamento era uma herança das “experiências de guerra” — na Segunda Guerra Mundial, os pracinhas do Brasil lutaram ao lado dos americanos.
“Além disso, as Forças Armadas declaravam ter o mesmo inimigo dos Estados Unidos: o comunismo”, pontua a historiadora.
Para a socióloga e cientista política Mayra Goulart, professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), historicamente há uma convergência ideológica entre as elites antipopulares brasileiras e latino-americanas e os governos dos Estados Unidos.
“O anticomunismo acaba sendo um afeto que recobre essa indisposição dos governos norte-americanos e das elites brasileiras contra lideranças e governos que se identifiquem e priorizem as classes populares”, avalia ela à BBC News Brasil.
“Era natural que o embaixador Gordon desejasse fortalecer as capacidades do aliado norte-americano, os militares, especialmente diante da ameaça de um golpe vindo de qualquer um dos lados”, acrescenta Parker.
No dia 28 de março, pouco antes do golpe, Gordon enviou telegrama classificado como ultrassecreto ao Departamento de Estado do governo norte-americano.
Nele, reafirmou suas teses de que Goulart estava planejando um golpe para alcançar poderes ditatoriais, com a colaboração do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e outros integrantes da “esquerda revolucionária radical”.
O teor dessa comunicação só foi revelado integralmente em 2004. O embaixador demonstrou preocupação porque entendia que esse movimento levaria o Brasil ao comunismo. E reafirmava a hipótese de deflagração de uma guerra civil no país.
O principal contato dos americanos para a operação Brother Sam, conforme relata Fico, era o general de brigada José Pinheiro de Ulhoa Cintra.
Pelas tratativas, ele seria o encarregado de conseguir armas, munições e combustível do lado brasileiro.
Enteado do ex-presidente Eurico Gaspar Dutra (1883-1974), Cintra foi chamado de “um dos grandes revolucionários do Exército” por Humberto Castelo Branco (1897-1967), primeiro presidente do período ditatorial, e classificado como um homem “violento, querendo fazer bobagem” por Artur da Costa e Silva (1899-1969), o presidente seguinte da ditadura.
Humberto Castello Branco, primeiro presidente da ditadura militar no Brasil, em foto de 1967
Universal History Archive/UIG via Getty images
O historiador Fico conta que Cintra era muito envolvido na conspiração militar, tendo sido ele autor de um manifesto chamado Lealdade ao Exército. Além disso, “odiava Goulart”.
Naqueles momentos antes do golpe, Gordon ainda coordenaria a redação final de um documento chamado Plano de Defesa Interna para o Brasil — que era, na verdade, um instrumento para avaliar as condições de segurança de um país em relação às ameaças internas que pudessem abalar os interesses dos Estados Unidos.
O plano situava o Brasil em “um processo de desestabilização em função do governo de Goulart, avaliado como problemático do ponto de vista administrativo”, detalha o historiador.
O embaixador sugeriu que o governo americano fizesse uma entrega clandestina de armas de origem não americana, que seriam repassadas aos apoiadores de um golpe que alçaria Castelo Branco ao poder. As armas precisariam ter outra origem justamente para evitar acusações de intervencionismo.
Como conta o livro O Grande Irmão, de Fico, a operação vislumbrada por Gordon tinha contornos cinematográficos: um submarino, não identificado, iria ser descarregado durante a madrugada em um ponto isolado na costa de São Paulo, próximo a Iguape ou Cananeia.
A essa altura, o embaixador acreditava que o que a mobilização chamada por ele de “forças amistosas” iria conseguir vencer sem necessidade de reforço americano.
Mas ele alegava que era preciso preparar a retaguarda para o caso de resistência prolongada dos apoiadores de Goulart ou mesmo de uma contraofensiva por parte dos soviéticos. O esquadrão americano funcionaria como uma demonstração de “força imediata”.
‘Quem paga?’
Para o historiador Vitor Soares, o apoio dos Estados Unidos ao golpe não foi só ideológico ou diplomático, mas logístico, militar e direto.
“Só não intervieram militarmente porque os conspiradores aqui deram conta sozinhos”, diz Soares.
“Mas os documentos e análises históricas já mostraram com todas as letras: o imperialismo estadunidense estava ali, presente, operando.”
Quando a operação começou a ser desmontada após Castelo Branco avisar que não precisa de apoio, a questão para os EUA passou a ser outra: “quem paga?”.
Em telegrama enviado a Gordon, o secretário de Estado americano Dean Rusk (1909-1994) demonstrava preocupação com o custo da empreitada: 2,3 milhões de dólares.
Segundo Rusk, se a Brother Sam fosse desmobilizada, essa despesa não teria como ser arcada pelo Departamento de Defesa. Rusk dizia que talvez fosse preciso então solicitar um reembolso do governo brasileiro.
“A Operação Brother Sam, que se iniciou motivada pelas avaliações quase irracionais de Gordon, terminava reduzida à racionalidade do ‘quem paga?'”, comenta Fico. “O Brasil, aparentemente, escapou de pagar para quase ser invadido.”
Brother Sam e o tarifaço
Donald Trump, em foto de 6 de agosto de 2025
Reuters/Jonathan Ernst
A professora Mayra Goulart faz uma comparação entre a “guerra” econômica de agora, com as tarifas de Trump, o envio das forças americanas em 1964.
“São os Estados Unidos atuando no papel de potência hemisférica e, com isso, manifestando ingerência nos países que eles entendem como de sua área de influência”, afirma ela.
“[O que ocorre hoje] é uma reminiscência de um mundo que não existe mais. Hoje o mundo é muito mais multipolar.”
O cientista político Márcio Coimbra, ex-diretor da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex), vê ambos cenários como reflexo do “interesse estratégico constante” dos Estados Unidos sobre o Brasil.
“Contudo, a natureza e o contexto dessas ações são profundamente diferentes, evidenciando uma evolução nos métodos da política externa americana”, esclarece.
Nesse sentido, ele vê uma evolução no sentido de que os americanos “abandonaram” as operações “militares clandestinas”, como a Brother Sam, “em favor de ferramentas predominantemente econômicas e diplomáticas”, mais “transparentes e adequadas à complexidade do cenário internacional atual”.
A historiadora Bruna Gomes dos Reis lembra de outro paralelo entre os dois episódios.
“Em ambos houve um grupo de brasileiros que acionaram os Estados Unidos”, frisa.
“Na atual conjuntura, apesar de podermos supor algumas coisas, o que temos de fato é que bolsonaristas, especialmente o filho do ex-presidente [o deputado federal Eduardo Bolsonaro], atuaram como porta-vozes de um grupo que ofertaria a soberania nacional em prol de seus objetivos pessoais.”
O cientista político Enrique Natalino também reconhece semelhanças entre os momentos.
“Ambas as ações do governo dos Estados Unidos trazem à tona o temor dos interesses hegemônicos de perder influência e de ver ameaçada sua posição de domínio sobre as decisões internas do Brasil”, diz.
“Ou seja, apesar das transformações nos métodos de intervenção, o objetivo de controle estratégico permanece presente na história das relações internacionais envolvendo o país”, conclui o cientista político.
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